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Será que a Arquitetura Corporativa pode mesmo ajudar na interoperabilidade entre agências de governo?



 "Advogado do diabo"  é uma expressão originalmente utilizada pela Igreja Católica para designar o advogado que tinha por missão apresentar provas impeditivas da admissão de um candidato a santo ou beato. Sua função era averiguar todos os fatos apresentados em favor do candidato, procurando falhas nas provas de seus milagres.
Uma vez que defendo o uso da arquitetura corporativa, entre outras necessidades, para promover a interoperabilidade entre dados, processos e sistemas, o artigo de hoje será apresentado como uma ação do advogado do diabo, por meio de um estudo de caso realizado pela Universidade de Copenhague, Dinamarca, disponibilizado nos Anais da 39ª Conferência Internacional sobre Ciências de Sistemas. O estudo , que explora o motivo pelo qual agências públicas têm implementado, naquele país, programas de arquitetura corporativa, alerta para diversos fatores críticos quando esses programas são confrontados com os desafios da interoperabilidade.
Com uma visão teórica baseada na teoria institucional, a partir do campo da ciência política, a análise mostra que a interoperabilidade não é apenas um problema técnico e fatores econômicos e políticos são muito importantes para a implementação de programas de arquitetura corporativa.
Os achados sugerem que a implementação de arquitetura corporativa no governo desafia a forma como os sistemas de informação são organizados e regidos em órgãos públicos e leva a uma definição mais ampla de interoperabilidade.
O estudo indica que os desafios da interoperabilidade surgem tanto porque não há uma coordenação global para as diferentes iniciativas de sistemas de informação no setor da saúde bem como devido ao fato dos hospitais públicos não receberem incentivos econômicos e/ou políticos para compartilhar dados e funcionalidades de negócios com outras organizações públicas dinamarquesas. 
Apesar de tratar do segmento específico de saúde na Dinamarca, a situação se mostra bastante semelhante em diversas áreas do governo brasileiro no que se refere aos desafios da interoperabilidade para o governo eletrônico. 
Devido à limitação de tamanho do artigo, serão apresentados aqui os principais pontos do trabalho publicado. O documento original, em inglês, está disponível na biblioteca digital http://ieeexplore.ieee.org. Caso tenha interesse, faça uma busca utilizando os termos “Enterprise Architecture Implementation and Management: A Case Study on Interoperability”, naquela biblioteca digital. 
E, se você ainda não assistiu o filme "Advogado do diabo", com  Al Pacino e Keanu Reeves, não deixe de vê-lo! 

Introdução
O ambiente atualmente disponibilizado pela Internet, a interoperabilidade e integração de sistemas de informação no setor público tornaram-se veículos importantes para o sucesso de qualquer iniciativa de governo eletrônico.
Os órgãos públicos não estão mais simplesmente preocupados em disponibilizar informações on-line. Agora, o governo eletrônico na Dinamarca está progredindo no sentido da integração tanto de novos aplicativos quanto os de já existentes para apoiar diferentes níveis e funções dos serviços públicos, vertical e horizontalmente.
O principal desafio do governo eletrônico se dá no fato de que diversas agências públicas possuem um portfólio de sistemas de informação altamente fragmentado. Em alguns casos, arquiteturas proprietárias permitem a comunicação entre aplicações front-office e back-office e entre aplicações back-office dentro das organizações, mas dificultam a interoperabilidade com sistemas externos.
Em outros casos, a negligência na evolução de aplicações back-office integradas com serviços de front-office, dentro das próprias organizações, leva a grandes investimentos que não trazem retorno financeiro adequado para a implantação do governo eletrônico. Muitas agências públicas possuem uma carteira de sistemas de informação composta por sistemas legados para cada produto que oferecem. Estes sistemas são frequentemente pacotes monolíticos e assim extremamente difíceis de configurar e integrar com aplicativos desenvolvidos por outros fornecedores e proporcionar o acesso a novos canais de distribuição.
Em resumo, existem problemas de integração e interoperabilidade entre aplicações dentro de muitos órgãos públicos, mas também entre as agências dinamarquesas. De uma perspectiva de governo eletrônico é irônico como a introdução das reformas para a nova gestão pública (NPM – New Public Management) na Dinamarca, que procuram modernizar o governo por meio da divisão das grandes organizações em redes de agências relativamente autônomas, não melhorou esta coordenação. Como resultado, muitas vezes há uma falta de administração central e os departamentos podem comprar aplicações próprias para cada processo. Diversos processos são fragmentados ao longo de várias agências administrativas em "silos" que impedem a capacidade do governo para oferecer novos produtos e serviços integrados, ou consolidar as operações. Introduzir governo eletrônico significa transformar os processos de produção dos serviços públicos e os órgãos públicos devem, portanto, explorar novas maneiras de gerenciar seus ativos de sistemas de informação de uma forma que lhes permita oferecer interoperabilidade para esses serviços.
Uma abordagem popular, em muitas agências públicas dinamarquesas, para lidar com os desafios de interoperabilidade está na implementação de programas de Arquitetura Corporativa (EA – Enterprise Architecture). Da mesma forma que as organizações comerciais estão promovendo a reengenharia de suas respectivas empresas para se ajustarem a diferentes condições econômicas e de mercado, os órgãos públicos devem adaptar-se para apoiar tanto necessidades empresariais e civis para a melhoria dos serviços prestados e as exigências da nova economia digital. O objetivo é a articulação completa de todos os níveis de uma empresa, integrando os processos estratégicos e de negócios com os sistemas de informação, tecnologia e dados. Um programa de EA orienta os processos de negócios de uma empresa e os sistemas de informação para um objetivo comum e integra negócio, dados, informações e tecnologia. O ponto forte de uma EA é que ela abraça tanto o foco do front-office quanto do back-office, juntamente com um modelo de governança que orienta o uso de sistemas de informação pela perspectiva do negócio. Assim, muitos profissionais acreditam que a EA é a solução para vencer os desafios da integração e interoperabilidade que o setor público da Dinamarca enfrenta.
A abordagem atual da EA em muitas agências trata do planejamento e gestão de sistemas de informação de forma isolada, olhando fortemente as necessidades da organização. Na realidade, porém, a gestão das iniciativas de governo eletrônico se torna pouco estruturada baseada na cooperação ad-hoc em muitas configurações interorganizacionais. O principal obstáculo no governo é a elevada fragmentação, onde muitos atores estão envolvidos para se oferecer serviços eletrônicos. Ter apenas um foco limitado, enxergando os projetos de arquitetura corporativa de forma isolada nas agências de governo é um problema comum de muitos projetos em curso.
O desenvolvimento de programas de gestão da EA em organismos públicos não é suficiente, por si só, uma vez que é também essencial para assegurar a aplicação da EAs resultantes no governo como um todo. Ligando diferente serviços públicos para proporcionar qualidade e confiabilidade no governo eletrônico exige que compreendamos a complexa cooperação organizacional - e conflitos - em órgãos públicos. A história tem mostrado que o uso organizacional de sistemas de informação é complicado. Estudos mostram que 53% de todos os projetos de tecnologia da informação (TI) falham e apenas 30% de projetos de implementação, tais como Gestão de Sistemas de Informação (MIS – Management Information System), são bem sucedidos. Assim, o desenvolvimento e a gestão de programas de EA adequados e sua aplicação efetiva devem ser vistos como elementos críticos interdependentes do sucesso de muitas agências públicas contemporâneas.
Centrando-se no micro e meso organizacional ao invés dos níveis macro nacional e internacional, este estudo de caso interpretativo explora a adoção de um programa de EA, no maior hospital da Dinamarca, para responder à pesquisa perguntas:
1) por que as organizações públicas implementam programas de EA e
2) como a interoperabilidade é regida em diferentes níveis (vertical) e diferente funções (horizontal) de governo, em programas de EA.
A fim de examinar as questões de pesquisa empiricamente, um profundo estudo de caso sobre a implementação e gestão de uma iniciativa de EA no Hospital Universitário de Copenhague (CUH - Copenhagen University Hospital) foi realizado. A análise é apoiada por material proveniente do setor de saúde do governo dinamarquês e entrevistas com o arquiteto-chefe da Corporação de Hospitais de Copenhague (CHC - Copenhagen Hospital Corporation) a fim de obter uma completa compreensão sobre as necessidades de interoperabilidade que abrangem níveis organizacionais em programas de EA. A análise é realizada por meio da visão da teoria institucional da disciplina de ciência política.
Interoperabilidade em Governo Eletrônico
A criação de interoperabilidade no governo requer mais do que apenas ter uma norma técnica comum ou usar o XML para criar integração técnica entre duas aplicações. Portanto, a interoperabilidade deve ser mais amplamente definida como a capacidade de informação dos sistemas e dos processos de negócio que dão apoio, para o intercâmbio de dados e partilha de informação.
Com base no Framework Europeu de Interoperabilidade (EIF - European Interoperability Framework), foi sugerido que a solução para os problemas de interoperabilidade do governo é que todas as organizações públicas sigam o mesmo framework padronizado para a interoperabilidade organizacional, semântica e técnica.
No entanto, a ligação entre diferentes serviços administrativos para proporcionar qualidade e confiabilidade aos serviços de governo eletrônico também exigem a compreensão das ligações complexas da cooperação - e conflitos - entre as organizações de governo.
Método de pesquisa
Como membro ativo da comunidade de EA na Dinamarca, o autor foi convidado a observar a implementação local de um programa de EA no Hospital Universitário de Copenhague (CUH - Copenhagen University Hospital) em 2004. O objetivo era aprender mais sobre o processo de implementação de programas e gestão de EA a nível organizacional e os desafios de interoperabilidade, para este propósito.
No total, onze entrevistas foram realizadas em 2004 e 2005. Cinco entrevistas com o arquiteto-chefe do Hospital Universitário de Copenhague foram suplementadas com duas sessões de entrevista com o gestor de TI do mesmo hospital e três dos cinco proprietários do sistema hospitalar. Além disso, uma entrevista foi realizada com o arquiteto-chefe da Corporação de Hospitais de Copenhague para complementar o que foi apreendido nas entrevistas com o pessoal do Hospital Universitário de Copenhague e entender os desafios de governança do melhor hospital da região de Copenhague.
Os entrevistados foram convidados a refletir sobre suas experiências com a implantação do programa de EA e os desafios de coordenação e interoperabilidade enfrentados na gestão do programa. As entrevistas foram complementadas com o exame de artefatos - documentos, apresentações e recortes de jornais.
A análise dos dados recolhidos a partir de várias fontes refletiram o quadro analítico na tentativa de identificar importantes elementos de conteúdo, contexto e processos do processo de implementação da EA, percebidos pelos diferentes indivíduos entrevistados em diferentes momentos do processo.
Discussão
A análise mostra claramente que há pouca coordenação entre os diferentes níveis e funções do setor de saúde dinamarquês. A implementação e gestão de sistemas de informação tem sido descentralizada, como parte das reformas da Nova Gestão Pública (NPM - New Public Management), e enquanto o Hospital Universitário de Copenhague é parte da Corporação de Hospitais de Copenhague e do Setor Nacional de Saúde em geral, na realidade, os hospitais trabalham individualmente como atores independentes que podem gerenciar, da forma como desejam, todos os níveis e tipos de interoperabilidade.
Para o Hospital Universitário, criar a interoperabilidade a nível interno e externo é importante. Mas os argumentos políticos e econômicos para a execução do programa provaram ser muito importantes em uma situação de grandes mudanças estruturais. O ambiente de incerteza dificulta ao Hospital justificar os investimentos que não estão diretamente relacionados com o dia a dia.
Não há nenhuma coordenação geral das diferentes iniciativas de governo eletrônico no setor da saúde e não há nenhum incentivo direto econômico e/ou político para o Hospital Universitário compartilhar dados e funcionalidades de negócios com outras organizações ligadas aos serviços de saúde dinamarquês. Assim, o programa de EA no Hospital Universitário de Copenhague pode ser visto como uma tentativa de mantê-lo como uma recomendação nacional de bons serviços prestados. O trabalho de EA na Corporação de Hospitais de Copenhague e os outros hospitais, tem motivos "racionais", como o aumento da interoperabilidade, consolidação e preservação do seu valor.
Pode-se perguntar por que não existe uma coordenação global deste tipo de iniciativas de governo eletrônico no setor de saúde dinamarquês. Uma resposta poderia ser que a EA não é a ferramenta certa para a criação de interoperabilidade no governo em geral. Os quadros da EA e modelos que usamos no setor público foram construídos para empresas privadas e tem um foco organizacional limitado, enquanto o governo eletrônico busca enxergar um "amplo quadro", consolidando diversas necessidades em distintos órgãos e funções
A força principal da abordagem da EA é que ela tem definido os seus conceitos e instrumentos para prever e controlar sistemas técnicos complexos. Mas, programas de EA podem exigir tanto rigor e coerência organizacional que prejudicam a agilidade organizacional. A questão é se a EA é a ferramenta correta para as organizações públicas de saúde dinamarquesas. Frameworks muito rigorosos de EA, definições vagas e a completa adoção organizacional são alguns dos maiores desafios.
Programas de EA futuros no governo dinamarquês devem, portanto, abranger a dinâmica do setor público (e suas limitações), bem como se preocuparem com a agilidade na aplicação de serviços de governo eletrônicos interoperáveis.
Ao longo deste argumento, uma outra resposta pode ser que o contexto do governo é simplesmente muito diferente em relação ao contexto para o qual a disciplina geral de EA foi desenvolvida originalmente. A perspectiva institucional nos alerta para o fato de que o governo é propenso a usar sistemas de informações diferentes do que as empresas privadas normalmente utilizam. A teoria institucional oferece uma visão que concebe programas de EA como tendo elementos institucionais próprios, além de estarem sujeitos a pressões institucionais das organizações públicas.
A realidade na maioria das configurações de governo eletrônico é que existe uma estrutura complexa e rígida de normas legais, enquanto os serviços interoperáveis devem ser entregues de forma segura e transparente. No sentido restrito, a EA trata da implementação de arquiteturas de sistemas de informação, e isso pode não ser suficiente para capturar as complexas dinâmicas no desenvolvimento do governo eletrônico e gerenciamento de sistemas. Programas de EA no setor público são eficazes na difusão de mensagens sobre os benefícios do uso do planejamento estratégico dos sistemas de informação como uma ferramenta para criar interoperabilidade e integração para o governo. Mas, eles também podem implicar em um risco elevado de confusão e esforços locais frustrantes para fazer sentido.
Conclusão
O estudo de caso ilustra como iniciativas voltadas para sistemas de informação no setor público já não podem ser desenvolvidos em "silos", sem relação com as demais partes do governo. Interoperabilidade e integração estão se tornando cada vez mais importantes quando as organizações públicas implementam e gerenciam programas de EA, porque processos técnicos e organizacionais agora abrangem diferentes organizações em diferentes níveis interdependentes (vertical) e diferentes funções (horizontal) de governo.
Governar a interoperabilidade entre domínios organizacionais em programas de EA exigem que os órgãos públicos constituam os seus programas de EA em relação a outras partes do setor público. A análise revelou diferentes problemas de interoperabilidade em diferentes níveis do governo e, portanto, precisamos expandir o entendimento tradicional de interoperabilidade em programas de EA do setor público para abraçar questões organizacionais, semânticas e técnicas.
Curiosamente, a análise mostrou que interoperabilidade e integração não foram os únicos argumentos para a implementação do programa de arquitetura corporativa no Hospital Universitário de de Copenhague. Pressões do governo para a consolidação, preservação de valor e questões políticas também conduziram o desenvolvimento da arquitetura corporativa.
Muitos dos desafios de interoperabilidade surgiram porque a gestão de sistemas de informação foi descentralizada no setor de saúde da Dinamarca. A análise do estudo de caso ilustra que as organizações públicas são muito autônomas na gestão de programas de EA e que não existe uma coordenação global das diferentes iniciativas. Isso revela uma lacuna - e até mesmo elementos contra-produtivas - no que as reformas promovidas no setor público pela Nova Gestão Pública (NPM - New Public Management) estão a fazer e questiona os efeitos das atuais abordagens para a implementação e gestão de programas de EA em órgãos públicos.
A análise implica que devemos reconsiderar a forma como os sistemas de informação são organizados e regidos em um contexto de governo eletrônico. Levando em conta o único caso de foco, a implementação e gestão da EA no Hospital Universitário de Copenhague implica que as estruturas institucionais correntes no setor público dinamarquês não estão criando incentivos desejados para o desenvolvimento de serviços eletrônicos de governo interoperáveis. Os resultados chamam para uma definição mais ampla de interoperabilidade em programas de EA governamentais que abraça questões organizacionais, semânticas e técnicas para incorporar as preocupações da interoperabilidade em diferentes níveis e funções do governo. A questão é se os tradicionais frameworks de mercado podem superar este desafio no esforço para desenvolver a interoperabilidade em redes de informação e de cooperação em processos de negócios onde são regidos por níveis organizacionais e funções no governo autônomos.

Dadas as provocações expostas no trabalho aqui apresentado, desenvolvido pela Universidade de Copenhague, convido o leitor a acessar a série de artigos que tem início no meu 1º artigo publicado no blog, que retrata questões relacionadas a algumas das especificidades necessárias à governança dos órgãos públicos, a arquitetura corporativa e a interoperabilidade, por meio da apresentação de uma proposta de framework de conteúdo de arquitetura corporativa, para ajudar a vencer esses desafios.

Deixe aqui sua contribuição e até o próximo artigo, cujo tema é "A integração de serviços em nuvens e o papel do arquiteto corporativo".
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