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O Milagre

Virou lugar comum dizer que atualmente o cinema argentino é melhor que o produzido no Brasil. Apesar de ser um admirador da produção nacional, não vejo qualquer contradição em concordar com a afirmação. Nossos "hermanos" têm de fato lançados títulos muito bons, tanto do ponto de vista técnico (fotografia, planos inovadores, tecnologias de filmagem) quanto dos roteiros escolhidos. Meus favoritos dessa safra são "Nove Rainhas" e "O Segredo dos Seus Olhos", não por coincidência, ambos com o astro Ricardo Darín. Darín parece ter "rosto de cinema", como estrelas do porte de Cary Grant e Harrison Ford - sua presença em cena é quase uma certeza de que algo de bom virá.



Da mesma forma, outra afirmação que se faz relativa ao cinema brasileiro é a de que ainda estamos devendo um grande filme de nossa maior paixão esportiva, o futebol. Algo semelhante era dito a respeito de corridas de automóveis, mas o excelente "Rush" (2013) preencheu essa lacuna, narrando a espetacular disputa entre James Hunt e Niki Lauda pelo título de Fórmula 1 de 1976.

Na última sexta-feira tropecei casualmente no filme "Miracle" (em português, "Desafio no Gelo"), disponível no Netflix. Reconta a história do time norte-americano de hóquei sobre o gelo e sua histórica conquista da medalha de ouro nas Olimpíadas de Inverno de 1980. Kurt Russell vive o treinador Herb Brooks, que conduz a equipe à vitória frente aos soviéticos depois de vinte anos de hegemonia deles no esporte.

É um típico filme de coragem e superação e nem dá para dizer que há surpresas quanto ao seu resultado final. Porém, algumas falas do treinador logo no início fizeram-me ter a ideia de escrever este texto. Herb é chamado para "não fazer feio" nos jogos, pois a própria direção da associação de hóquei não acreditava na possibilidade de sucesso - mas os jogos seriam nos Estados Unidos e um vexame devia ser evitado. Eram tempos de guerra fria, orgulho nacional ferido e também de separação entre jogadores profissionais e amadores - somente estes poderiam ser recrutados para os Jogos.

Herb surpreendeu a todos ao afirmar que não precisava necessariamente dos melhores jogadores individualmente - mas daqueles que usassem seus grandes talentos a favor de um objetivo comum a ser construído. Outra de suas afirmações marcantes foi a de que o time soviético era fenomenal porque dispunha de grande técnica (jogava artisticamente), de compromisso mútuo e atacava o adversário durante toda a partida. Assim, em sua visão, a única forma de enfrentá-lo seria jogar da mesma maneira, em vez de se manter na defesa. A ousadia e a busca da excelência fizeram a história ocorrer.

Gosto das metáforas esportivas para falar de processos e uma das coisas que mais me incomodam no tema é a excessiva valorização de "processos como sequências de atividades". Lógico que durante todo o treinamento da equipe norte-americana de hóquei houve muita intensidade física e repetições de procedimentos, mas sempre a favor do elemento humano dos processos, do objetivo comum, do sentimento de grupo, da integração dos talentos individuais e da arte escondida por trás do esporte. Em nossos modelos de processos devemos registrar, sim, as atividades presentes, mas nunca desconsiderar aquele outro lado que também está envolvido, as características humanas que fazem as sincronias ocorrerem, as decisões a serem tomadas de acordo com o previsto, os resultados serem alcançados e, principalmente, os valores a serem gerados aos indivíduos.

Enquanto isso, continuamos esperando por um grande filme brasileiro de futebol.


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